Ler, Ver e Comer | 31 de Dez de 2017 - 05h12

Escalada do ódio

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Cada vez com mais frequência, demonstrações de intolerância e desrespeito à liberdade de expressão tomam conta do noticiário e das redes sociais. Atualmente, não há um assunto sequer que não gere discussões acaloradas e que ponha tanta gente em pólos opostos com argumentos raivosos em defesa de seu lado.
Seja na política, com o inútil confronto entre “coxinhas” e “mortadelas”, seja em demonstrações de racismo e homofobia, seja na defesa ou oposição a exposições artísticas de gosto duvidoso. O que se vê é uma escalada do ódio, aparentemente infundada, mas que, na verdade, tem raízes bem sólidas.
Dois excelentes livros mostram bem os caminhos e a evolução da intolerância neste terceiro milênio. “The Tyranny of Silence”, ou a “Tirania do Silêncio”, do jornalista dinamarquês Flemming Rose, apesar de ainda não haver sido lançado em português, ganhou já a publicação de trechos em blogs e alguns periódicos brasileiros.
Nessa obra, Flemming trata o episódio do repúdio à publicação de charges em que o profeta Maomé era retratado de forma satírica pelo jornal dinamarquês “Jylands-Postem” em 2005. O caso gerou uma onda de protestos violentos ao redor do mundo árabe e até ameaças de morte. Mas o mais impressionante foi a reação de censura e violação da liberdade de expressão vinda de setores aparentemente liberais dentro da própria Europa.
O autor mostra como a defesa de valores religiosos virou pretexto para suprimir a liberdade de expressão, algo bem mais valioso dentro de um Estado laico. Na verdade, os grupos religiosos que se sentiram ofendidos, procuraram usar um episódio isolado para exigir de governos europeus sanções impensáveis em nações democráticas e liberais.
O livro reúne depoimentos e comparações com outros casos de censura, como na antiga URSS, e como a escalada do politicamente correto serve de armadura para censura e intolerância. O livro é um extenso trabalho de pesquisa e merece ser lido principalmente por quem lida com Comunicação.
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O historiador brasileiro Leandro Karnal se tornou uma celebridade no país por falar coisas óbvias com pecha de intelectual. Isso só poderia acontecer num país em que se lê muito pouco. Mesmo assim, o livro “Todos contra Nós - O Ódio Nosso de Cada Dia” é uma excelente coletânea de textos que explica de forma simples as origens da intolerância que domina atualmente os meios sociais.
Karnal ajuda a desmistificar essa conversa mole de que o “brasileiro é cordial”. Ele mostra que ter sentimentos de preconceito e intolerância sempre esteve na essência cultural do brasileiro. Ele traz exemplos nítidos disso desde a formação colonial até os dias de hoje. O autor destaca o clima de “Fla-Flu” na política e como as redes sociais deram voz aos ódios mais íntimos, já que levou o individual para a ágora digital, embora a essência individualista permaneça intacta.
Esses dois livros ajudam a perceber as atitudes da sociedade e do indivíduo no dia a dia. Servem de reflexão sobre intolerância e individualismo, apesar de resgatarem um certo tom maniqueísta à Thomas Hobbes de que “o homem é o lobo do homem”. Ambos procuram lançar um olhar crítico em aspectos extremamente contemporâneos, e, embora não sejam de autoajuda, servem para que o leitor tente ser uma pessoa mais consciente, e até, utopicamente, melhor.