Reportagem | 18 de Jan de 2018 - 02h01

Filosofia do entulho

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Av. Allan Kardec, metade tomada pelo lixo


Não é nenhuma novidade! Ver matérias jornalísticas mostrando montanhas de lixo e entulho jogados em locais inadequados, no meio da rua, em diferentes pontos da cidade, é algo até banal. Funciona mais ou menos assim: o repórter aparece; mostra a porqueira; entrevista dois ou três moradores, que reclamam da falta de educação da população; ouvem-se as autoridades, que dizem sempre fazer a parte delas; e pronto! Pauta cumprida!
 
No entanto, ninguém nunca procurou analisar essa situação corriqueira por um viés mais filosófico. Pode parecer viagem? Não, porque somente assim esse hábito ganha certo sentido, e fica fácil entender que ele nunca vai deixar de existir. Nem de servir de assunto para os telejornais locais por anos ainda. Quatro lições básicas podem ser retiradas do entulho. Quem diria que seria possível reciclar ideias no lixo aracajuano?
 
Lição 1 - O Leviatã encontra Allan Kardec
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Moradores querem câmeras para coibir descarte


Calma! O intertítulo acima não é o anúncio de nenhuma sessão espírita para incorporar o filósofo inglês Thomas Hobbes, teórico do Leviatã, a força maior do contrato social, que, entre outras coisas, fundamentou a moderna noção de Estado, que passa a gerir a vida social para que todos possam ter suas liberdades asseguradas e não se chegue ao conflito.
 
Allan Kardec, educador francês criador da doutrina espírita, dá nome a uma avenida aracajuana, no Bairro Getúlio Vargas, nos fundos da Escola Técnica (Cefet), em que metade dela foi tomada por uma montanha de entulho. Ali, o Estado Leviatã poderoso de Hobbes sumiu! Sem controle, rola a bagunça! Nesse caso, há tanto resto de construção jogado na via que até o tráfego no local já está prejudicado.
 
“Os motoristas só têm metade da pista para passar. A rua já é estreita por causa do canal. E piora com o resto tomado pelo entulho. Isso é uma vergonha. A única solução para o problema era colocar um vigia ou câmeras para filmar e atuar quem joga lixo aí”, sugere o aposentado Carlos Alberto Silva.
 
Segundo os moradores, o poder público até dá as caras, há coleta do entulho, mas os carroceiros voltam no mesmo dia em que a avenida é limpa e refazem a montanha. A solução defendida pelos residentes seria uma espécie de BBB na rua. A força do Estado ainda mais presente. “Se instalassem câmeras seria uma boa. Até porque a coleta de lixo é irregular, vem uma semana, não vem na outra. Assim, a presença delas inibiria quem jogasse lixo aí, que seria filmado, mas o ideal mesmo seria um vigilante ou policiamento, já que jogar lixo é crime”, defende o estudante Euvaldo Santana.
 
Mas nenhum morador parece perceber como se financia o Leviatã. Quem pagaria pelas câmeras? Eles mesmos? A Escola Técnica? A SSP? E os vigias, seriam de onde também? Nesse contrato social, só não ficou definido quem arca com o quê. Enquanto isso, carroceiros descarregam pedras no local e, quando questionados se estão errados, os mais educados só respondem: “mandaram eu jogar aqui”; os mais sem paciência dizem: “vá reclamar com o prefeito”. E volta-se ao velho contrato social. Os moradores já pagaram seus impostos. Agora compete à prefeitura cumprir a parte dela. Só fazer coleta não resolve!
 
Lição 2 - O cinismo encontra uma virtude
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Airton Teles: 20 anos de lixo


Os cínicos eram filósofos gregos antigos que pregavam que todos deviam viver segundo suas próprias virtudes, exercendo a indiferença sobre quem ou o que não se adequasse a elas. Na concepção moderna da palavra, adotada a partir do século XIX, as qualidades foram deixadas de lado, e o cínico passou a ser só quem age com indiferença.
 
E com todo o bom cinismo do século XXI, quem trabalha ou passa pela Avanida Airton Teles, no Bairro Santo Antônio, ignora o monte de entulho que há mais de vinte anos se forma todas as semanas na ponte sobre o canal no cruzamento com a Rua Simão Dias. Por ali, a prefeitura também limpa, mas o lixo volta quase que instantaneamente.
 
Como nessa rua quase não há nenhuma residência, mas somente oficinas mecânicas e depósitos, os frequentadores acabam tolerando o lixo. “Aqui é assim mesmo. Pelo menos, não jogam dentro do canal”, ameniza e resigna-se o soldador José Arimatéa Brito.
 
Enquanto Arimatéa dizia isso, um gari passava tentando recolher pedaços de papel na montanha de cascalho. Ele parecia o único a se importar com o que via. “Nosso trabalho é cansativo porque não falta lixo em Aracaju, mas eu podia estar limpando outro local, não aqui, nesse entulho. Quem faz isso na rua não entende que está tirando o gari de outro lugar que também precisa. Assim sofrem todos, até quem mora longe daqui”, explica o varredor Renilton Santos da Silva, dando uma aula de virtude!
 
 
Lição 3 - Materialismo encontra especulação
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Avenida Oceânica, entulho de norte a sul da cidade


A Avenida Oceânica, no Bairro Coroa do Meio, fica a menos de 300 metros da Orla da Atalaia, o que faz dela um dos endereços mais nobres da capital. Mas isso não impediu que ela ganhasse um dos maiores pontos de descarte de entulho da cidade. Por ali, não estão só restos de construção, mas também ferragens, móveis e colchões velhos e até gente, que vive de catar material reciclado, morando em casebres improvisados. Afinal, nada se perde, tudo se transforma. Só o que é matéria importa!
 
O interessante é que toda a Oceânica é pavimentada e urbanizada, o lixão se instalou justamente no único trecho da via em que não há asfalto, nem nenhum prédio por perto. A solução para o problema parece estar na especulação imobiliária. (Olha o material de novo! Dessa vez o vil metal!). Moradores do local rezam para que os últimos terrenos baldios sejam logo ocupados, o que afugentaria, eles creem, quem joga entulho no local.

“A situação aqui do jeito que está é muito precária. Acredito que esse seja o maior depósito de entulho da cidade. Infelizmente, a gente não vê solução para evitar isso. Não tem como ter vigilância! O lixo não é jogado num terreno particular, mas no meio da rua. O jeito é esperar o poder público asfaltar esse trecho e que, com isso, os donos dos terrenos se interessem em finalmente construir”, espera o professor de Educação Física  Fred Lisboa.
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Fred defende que restante da via seja asfaltada


 
Lição 4 - Maquiavel encontra o ceticismo
 
A Prefeitura de Aracaju, dentro do espírito maquiavélico clássico, não o sentido moderno de “fins justificam meios”, mas o de que é dever proporcionar bem-estar ao cidadão, afirma que tem combatido o descarte irregular de resíduos sólidos.
 
De acordo com o secretário Municipal do Meio Ambiente, Augusto César Viana, a administração já identificou 600 locais onde há lixo acumulado nas ruas. Somente neste mês de janeiro, já foram expedidas 70 notificações para indivíduos que foram flagrados abandonando entulho em local público.
 
“Os carros têm a placa anotada e o veículo fica com restrição no Detran, o dono dele terá que pagar uma multa no momento de renovação do licenciamento. O nosso maior problema é com os carroceiros, que não possuem qualquer tipo de identificação. Mas isso já será resolvido, pois uma lei municipal já foi promulgada e prevê o cadastramento das carroças. Assim, elas poderão ser autuadas também; além disso, será proibido o transporte de resíduos de construção em carroças”, garante Viana.
 
Mas a população também precisa fazer a parte dela. E o egoísmo da classe média é puro Maquiavel clichê: perverso! “As pessoas precisam se conscientizar que não podem chamar um carroceiro, pagar qualquer tostão e fazer eles levarem o entulho para longe, sem se importar com onde ele vai ser deixado”, alerta o secretário do meio ambiente.
 
Como teoria do pensamento, o ceticismo dizia que a mente humana não podia atingir certeza nenhuma em relação à verdade. Apesar do declarado empenho da Prefeitura, o problema do descarte de entulho continuará. Ele até poderá melhorar em locais onde a especulação imobiliária chegar ou houver fiscalização constante, mas dificilmente sumirá da Avenida Airton Teles, por exemplo, onde é tolerado. Não se trata de um pensamento pessimista, mas só que não é possível refundar o Brasil. Educação e senso de coletividade vêm de berço. Realismo também é filosofia!
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Apesar do empenho da Prefeitura, combate ao descarte é difícil