Reportagem | 26 de Dez de 2017 - 02h12

Capitalismo à sergipana

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Grupo de desempregados se reúne em frente à termoelétrica


Todas as manhãs, o eletricista Carlos dos Santos se veste, toma café, despede-se da família e sai cedo de casa para mais um dia de protesto. Demitido há quase um ano, sua ocupação passou a ser lutar exatamente por trabalho. Ele faz parte de um grupo de cerca de 400 desempregados, batizado de SOS Emprego, que se reúne diariamente ao longo da rodovia SE-100 em Barra dos Coqueiros para pressionar que a Centrais Elétricas de Sergipe (Celse), termoelétrica que está sendo construída nesse município, contrate mão de obra local.
Carlos e seus companheiros passam a maior parte do dia sentados às margens da estrada, abrigando-se do sol quente embaixo de pequenas árvores. Quem passa pela rodovia chega a imaginar que se encontra diante de um assentamento de trabalhadores sem-terra ou de algum despejo judicial. A presença constante deles fez até brotar barracas de vendedores de salgados e sucos no local. Mais de perto, o protesto chega a parecer uma feira.
Os desempregados acreditam que, ao fazerem vigília na estrada, estão dando visibilidade para a causa. Eles também já fizeram protestos mais audaciosos, como bloquear o acesso ao canteiro de obras da usina quatro vezes, com direito a pneu queimado e confronto policial, e até fizeram passeata na avenida Adélia Franco, em Aracaju, para exigir serem recebidos pelo governador Jackson Barreto no mês passado.
“Estou desempregado desde 2015. Somos uma mão de obra altamente qualificada e apenas exigimos que a termoelétrica nos dê prioridade. Fizemos um cadastro na empresa, participamos de reuniões em que há atas assinadas e ficou acordado que a usina chamaria 25 trabalhadores por semana, mas até agora não fomos chamados para nada”, desabafa Carlos Santos.
A situação de Carlos é só a parte mais fraca e dramática de um jogo de interesses que envolve muita propaganda enganosa, uma supervalorização da presença da usina e até máfia e assassinato. Uma saga espantosa que reflete cristalinamente o jeito paternalista de se promover desenvolvimento em Sergipe.
 
Falsas esperanças e contradição
 
O prefeito de Barra dos Coqueiros, Airton Martins, é um dos maiores entusiastas da implantação da termoelétrica no município, afinal, sonha com os royalties da produção de energia e dinheiro dos impostos, mas também pensa na geração de empregos, que, embora não seja mérito seu, sempre rende dividendos políticos. Uma lei municipal garante prioridade na contratação de mão de obra local, e foi imposta a Celse como condição para ter a liberação do solo para a instalação da usina.
Porém, é difícil imaginar que em uma cidade com 30 mil habitantes haja mão de obra qualificada em número suficiente para atender as necessidades da empresa. Quantos engenheiros elétricos haverá em Barra dos Coqueiros?  E em Sergipe? Óbvio que a empresa, no fim das contas, é livre para contratar quem ela achar melhor, seja daqui ou de fora, mas os políticos insistem na idéia fixa de que a prioridade deve ser de locais, mesmo quando isso parece numericamente impossível.
A empresa, na tentativa de fazer a campanha da boa vizinhança e cumprir a tal lei, garante que a maioria dos contratados é de sergipanos. Segundo o empresário Edio José Rodenheber, diretor de operações da Celse, em relação à oferta de empregos diretos, 857 trabalhadores já foram contratados pela empresa, entre os quais 587 são sergipanos, o que representa 68,5% de nativos. Já foram contratados 264 indiretos, entre os quais 88 são sergipanos, representando 33% do efetivo. Os dados são do final de novembro.
Os integrantes do SOS Emprego discordam desses números apresentados pela empresa. Eles garantem que o total de nativos contratados para postos diretos não chega a 40%, mas caem em contradição ao praticarem o “faça o que digo, mas não faça o que eu faço”. Boa parte deles, apesar de ter residência fixa em Sergipe,  e exigir, agora, prioridade na contratação, sempre trabalhou fora do Estado.
Ou seja, lá fora, eles ocupavam vagas que, pela lógica do movimento, deveriam ser de nativos. O eletricista Carlos dos Santos trabalhava no Polo Petroquímico de Camaçari na Bahia. “Ainda faço bicos de 20 dias por lá e no sul da Bahia”, revela, mostrando que, para quem está desempregado, não tem essa de “reserva de mercado”.
O operário Yslândio de Oliveira Santos trabalhava, antes de perder o emprego em 2015, na construção da Refinaria Abreu e Lima em Pernambuco. “Fui pra rua depois da Lava Jato. A descoberta da roubalheira cortou a grana e gerou demissões. Desde então, estou na pior”, lamenta. Ao ser confrontado com a contradição de ocupar vagas de pernambucanos, ele desconversou. “Agora, também por lá, eles só contratam gente nativa mesmo, por isso voltei para Sergipe”, ameniza o desempregado, sem convicção.
 
Máfia
 
O anúncio da construção da termoelétrica, e a consequente divulgação, patrocinada até mesmo por políticos, de que sergipanos teriam prioridade na contratação, fez surgir uma máfia para fraudar endereços em Barra dos Coqueiros. Os integrantes do movimento SOS Emprego denunciam que muita gente mudou título de eleitor para o município sergipano, mesmo sendo de fora do Estado.
Embora falem de forma velada, os participantes do movimento acreditam que o assassinato do líder do SOS Emprego, Clodoaldo Santos, no dia 14 de dezembro, tem a ver com a apuração de supostas irregularidades no fornecimento de endereços falsos. Clodoaldo, 40 anos, foi baleado por um homem numa moto após ser abordado por outro jovem, que foi até a casa dele com o pretexto de entregar um currículo. A polícia mantém sigilo sobre as investigações e ainda não mencionou nenhuma relação com a suposta máfia. Na semana passada, o retrato falado do suspeito foi divulgado. O inquérito deve ser concluído em 20 dias. 
Os demais colegas de Clodoaldo cobram agilidade na identificação do assassino, mas temem que a morte acabe dando má fama ao movimento. “Só estamos lutando por emprego, mais nada, não mexemos com ninguém. Mas, infelizmente, tem gente se aproveitando da situação de carência para fraudar, gente que nunca morou na Barra ou até mesmo em Sergipe. Eles acabam manchando nossa luta justa”, lamenta um dos integrantes do SOS Emprego, que não quis se identificar.
 
Incertezas
 
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Celse deverá estar funcionando em 2020


Muitas dúvidas ainda pairam sobre a construção da termoelétrica em Sergipe. A principal delas é quanto aos reais benefícios que a empresa trará. Afinal, a maioria dos contratados será de sergipanos mesmo?  E os que trabalharam só na construção, serão aproveitados ou vão para rua quando a obra acabar? Fora isso, o governo do Estado tem visto na Celse uma espécie de “galinha dos ovos de ouro”, como se bastasse erguer a usina para que outras companhias viessem correndo para cá.
De acordo com o economista Luís Moura, da seção estadual do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), a questão de reserva de mercado é uma grande bobagem que foi exacerbada pelo governo por puro paternalismo.
“A luta por emprego é justa e o movimento SOS Emprego está correto em defendê-la, mas a empresa tem seus critérios técnicos, e, da mesma forma que gente de fora vem procurar emprego aqui, nada impede que sergipanos saiam também em busca dele em outros lugares. A vinda de gente de fora também movimenta a economia local. Quantos sergipanos trabalham em São Paulo e quantos paulistas trabalham aqui?”, indaga Luis Moura. 
O economista diz ainda que não está claro o tamanho do impacto que a Celse terá na economia local. “Todo mundo sabe que a energia é gerada aqui, mas pode ser consumida longe daqui, pois é transmitida e o sistema elétrico é todo interligado. Fora que as empresas que compram energia o fazem no mercado futuro, com preços fixos”, explica Luis Moura. Ou seja, nada garante que a simples presença da termoelétrica vire talismã para atrair outras empresas.
A usina está prevista para iniciar as operações em 2020. Ela terá capacidade de geração de 1.551 gigawatts hora de energia usando gás natural. A título de comparação, o consumo residencial de energia em Sergipe, nos municípios atendidos pela Energisa, foi de 1.018,7 gigawatts hora em 2016.