Reportagem | 19 de Dez de 2017 - 12h12

Bem-vindo à Rocinha Light!

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Jardim Universitário: onde nem a polícia entra


Sexta-feira, 18h30, a Avenida Universo, no Bairro Inácio Barbosa, em Aracaju, fervilha em mais um fim de tarde. Mães apressadas carregam crianças pela mão ao buscá-las na saída da creche. Estudantes aguardam a condução para voltar para casa. Adolescentes jogam bola na pracinha. Donas de casa compram leite na padaria da esquina e casais de namorados se encontram na sorveteria.
Tudo nesse “microcosmo” urbano parece normal, mas ali também rola um outro tipo de atividade comercial acima de qualquer suspeita. Espremida entre uma mercearia numa esquina e uma academia de ginástica na outra, está a Rua Ptolomeu, na verdade, um beco sem saída com entrada na Universo. A viela, batizada com o nome do astrônomo grego da antiguidade, possui o único “drive-through” de drogas do país, que é conhecido, de forma menos estrelada, como “Beco da Calçola”.
Quem “quiser ver estrelas” basta passar de carro vagarosamente, acender a luz interna ou dar sinal com o farolete. Prontamente, algum traficante que perambula na Ptolomeu, ou Beco da Calçola, irá entender o sinal e responder com o aceno de cabeça. O comprador para o veículo, e o negócio é feito ali, na hora. Vinte reais por uma trouxinha de maconha ou cápsula de cocaína. Tudo rápido, prático, mostre o dinheiro e tenha droga na mão.
Esse comércio rola na maior tranquilidade. Os vendedores não são importunados pela polícia, e não parecem perturbar os moradores do bairro. “A gente sabe que tem gente que compra e vende droga aqui. Moro nesse bairro há 45 anos. Já vi gente nascer, crescer e morrer na droga. Mas cada qual aqui respeita seu espaço. A venda de droga não me incomoda”, revela a dona de casa Jaci Santos, 66 anos. Para ela, tanto faz morar ao lado de uma sorveteria quanto a menos de 100 metros de uma boca de fumo.
Seja por absoluta descrença no poder público ou por pactos velados com os criminosos, é cada vez mais frequente encontrar, em comunidades da capital e da Grande Aracaju, pessoas conformadas com a presença constante de crimes e de violência nos locais onde vivem. Tal como nas favelas cariocas, a população tenta tocar a vida normalmente, fazendo concessões aos bandidos. Em Sergipe, há uma espécie de “Rocinha Light”, embora ainda não haja toques de recolher declarados nem tiroteios quase que diários entre facções de traficantes rivais, aqui também se vive no limite entre o medo, a apatia e o conformismo diante da violência.
 
Perdendo as contas
 
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Lucimara Alves: sem liberdade para sair a hora que quiser


Os playboys que compram maconha barata no Inácio Barbosa não imaginam como é viver numa das cidades campeãs de homicídios este ano em Sergipe. Segundo dados da própria Secretaria da Segurança Pública, SSP, até outubro, 30 pessoas foram assassinadas em Barra dos Coqueiros. Quase todas as mortes são relacionadas ao tráfico de drogas.
Em uma das comunidades mais violentas da Barra, conhecida como “Invasão do Guaxinim” impera a lei do silêncio. Os moradores não gostam de falar das mortes que ocorrem por lá, evitam dar nomes completos, mas admitem, em tom de conformismo, que, para conseguir viver ali, precisam adaptar suas rotinas.
A dona de casa Jamile ainda lembra com saudosismo a época em que as crianças do bairro podiam brincar livres na rua. “Antes, aqui era cheio de guri correndo. Hoje em dia, é, assim, um deserto. Ninguém é doido de ficar do lado de fora de casa. Na minha porta, ainda aparecem uns meninos porque vendo doces”, diz.
Ela garante que para sair de casa é necessária toda uma logística para evitar assaltos. “Com celular, só de dia. À noite, tem que sair antes do anoitecer e voltar só noutro dia. Até para ir à praia, nosso único lazer, tem que voltar cedo, pois sempre rolam arrastões nos ônibus e briga de torcidas organizadas”, confessa Jamile.
Com tanta gente morta em 2017, os moradores acabam perdendo as contas, e até chegam a aumentar os números. “Aqui, só nesta semana, mataram sete“,  exagera a dona de casa Márcia, confundindo o saldo de mortes de um mês em uma semana. Mas, para quem tem os assassinatos como rotina, a quantidade não parece mais chocar. “A gente nem liga. O pior é que é gente que todo mundo conhece aqui. Que a gente via todo dia, mas esse é sempre o fim dos nóia. Morrer na droga ou por causa dela”, admite a moradora.
As marcas de tiro também compõem a arquitetura das fachadas das casas, como na Rua Nova Esperança, local onde um adolescente foi assassinado com dois tiros no final de setembro. Além da ironia do nome, a via está localizada a menos de 200 metros da sede da prefeitura de Barra dos Coqueiros. A morte desse jovem seria mais uma que passaria em branco, não fosse pelo fato de o tiroteio ter obrigado uma escola pública a fechar por dois dias, até que a situação ficasse mais calma na comunidade.
“É para ser sincera? Aqui ninguém liga para gente, as mortes só viram notícia quando causam um transtorno maior, como no fechamento da escola, mas, no dia a dia, a gente é obrigada a andar sem nada, perder a liberdade de ir e vir, porque a gente só pode sair de casa na hora que não tem bandido na rua. Se alguém ficar doente, morre com dor, porque nenhuma farmácia vai vir entregar remédio aqui depois que escurece, tampouco entra ambulância”, desabafa a dona de casa Lucimara Alves Santos, uma das poucas a aceitar mostrar o rosto e a dar nome no Guaxinim.
 
Morar no engodo
 
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17 de Março: medo tranforma bairro em cidade fantasma


 
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Seu Moisés reclama da falta de correios


Construído há quase uma década, o bairro 17 de Março, na zona sul de Aracaju, foi entregue à população carente como garantia de solução de seus problemas. Uma comunidade planejada com ruas pavimentadas, casa própria, escolas, posto-médico, transporte de qualidade e segurança. Bom, diante de tantas promessas, somente o teto sobre as cabeças dos moradores parece ter sido a única cumprida.
O bairro convive com extremas carências. Falta absolutamente quase tudo lá. “A creche e posto-médico só foram inauguradas ano passado, mesmo assim, não atendem todo mundo. Só tem uma linha de ônibus, que nem entra aqui. Mas o pior mesmo é a violência. A gente não tem o privilégio de ter segurança. Aqui não tem nenhum posto policial”, lamenta o barbeiro Wemerson Damião.
Sem a presença policial, o bairro parece uma cidade fantasma. Mesmo em plena luz do dia, as ruas são desertas, quase não se veem pessoas andando, crianças brincando, não existe lazer no 17 de Março.
O comerciante Moisés dos Santos, mais conhecido como Moa, orgulha-se de ser o dono da única mercearia do bairro. Por essa razão, afirma que nunca foi roubado. Afinal, os bandidos também precisam consumir, e não atacam o local onde compram pão. “Nunca, graças a Deus, tive problema aqui. Mas quem é assaltado, precisa ir até o Santa Maria (bairro vizinho) para prestar queixa lá. Só aí, é que aparece carro de polícia aqui, faz uma ronda na tentativa de achar os ladrões, mas vai logo embora”, diz Moa.
Sem polícia, um serviço essencial para a comunidade fica impossível de ser realizado. No 17 de Março, até hoje, não há entregas dos Correios. “Acho que é por causa da violência. A Natura e a Schin entregam produtos aqui com escolta”, admite o comerciante Moisés.
Os Correios garantem que, embora carteiros já tenham sido assaltados no local, não há entrega domiciliar no 17 de Março porque o bairro não atende os requisitos mínimos exigidos pelo Ministério das Comunicações, ou seja, faltam placas de identificação das ruas e numeração regular nas casas. Isso é de responsabilidade da Prefeitura de Aracaju, que deixou a população no engodo também nesse sentido, sem saber nem em que rua mora.
O comerciante Moisés, cansado das promessas fajutas dos governantes, teoriza, como bom mercador, que a solução para a violência, que se propaga onde há um vácuo estatal, está no próprio capitalismo. “A situação de violência preocupa, mas já foi muito pior. À medida que lotes são vendidos aqui, eles valorizam, quem reforma as casa e as vende, já vende mais caro. Então quem compra tem poder aquisitivo maior. Isso faz com que a malandragem acabe tendo que ir morar em outro lugar, mais barato”,  explica. Nem Keynes foi tão longe!
 
Onde polícia não entra
 
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Escola campeã em alunos traumatizados pela violência


Se a polícia não está presente no 17 de Março porque ali falta posto policial, nas comunidades conhecidas como Jardim Universitário e Recanto dos Pássaros, no bairro Rosa Elze, em São Cristóvão, ela não vai porque simplesmente é impossível transitar pelo local.
As ruas, se é que podem ser chamadas assim, são completos lamaçais esburacados. Mesmo com tempo estiado, seriam necessárias viaturas com tração 4x4 para poder fazer uma perseguição por lá.
No vácuo estatal, mais uma vez, a violência prospera. Assassinatos e brigas por pontos de droga viram algo banal. “Ontem mesmo, mataram um lá na invasão do Recanto. A gente vive com medo, mas tem que sair para trabalhar. Que jeito?”, indaga, resignado, o comerciante Josivaldo Oliveira.
Sem segurança, o Jardim Universitário mostra outro lado de como a rotina violenta mexe com a vida das pessoas. Nesse caso, como ela afeta crianças. A comunidade possui a escola com maior número de jovens expostos a situações de violência na Grande Aracaju.
De acordo com Paula Andrea, coordenadora da Escola Municipal de Ensino Fundamental Ruth Dulce de Almeida, o que mais ela lida no dia a dia escolar são com crianças com problemas psicológicos e oriundas de famílias desestruturadas, ou por terem pais envoltos no crime ou por viverem perto de locais violentos.
“Relatos de mortes, de brigas violentas, de presença de armas são comuns. A gente ouve e orienta, mas não tem como evitar porque elas já chegam aqui com isso, e vivem no meio disso. Infelizmente, muitas crianças vêm até fugidas. É comum, por causa dos pais, elas pedirem transferência para outras áreas, então saem do Conjunto Jardim ou Parque dos Faróis, onde as famílias sofrem ameaças, e vêm para cá”, revela a educadora. Na verdade, as famílias pulam de uma área violenta para outra, numa sina sem fim.
A coordenadora aponta que a escola está tentando implantar um modelo de educação estruturada, incluindo o ensino integral. Ao fazer com que a criança passe mais tempo na unidade, ela pode se sentir segura e, além de poder ganhar um reforço no aprendizado, ganha mais algumas horas por dia longe da situação de violência. “É um paliativo, mas é o possível”, desabafa Paula.
 
Intramuros
 
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Rua sem saída vira condomínio para fugir da falta de segurança


 
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Dona Mara: população arca com gasto que devia ser do Estado


Junto com o Santa Maria, o bairro Santos Dumont sempre foi um dos campeões de ocorrências policias. Diante da constante onda de roubos e assaltos nessa comunidade da zona norte da capital, os moradores de uma rua sem saída não quiseram esperar pelo poder público.
Eles decidiram fechar a via, transformando o local numa espécie de condomínio fechado, no qual todos arcam do próprio bolso, como se impostos já não fossem suficientes, com a segurança.
“Somos 24 moradores, todos se reúnem toda vez que precisa fazer manutenção no portão ou nas câmeras. A gente faz uma vaquinha e arrecada o que for preciso”, detalha a autônoma Mara Cristiane de Argolo. 
Outra moradora lamenta que tenha que se mudar da rua-condomínio, pois não conseguiu abrir sua empresa no local. “Estou indo morar no (bairro) Getúlio Vargas e já me preocupo. Poxa, agora, terei que morar numa casa aberta para a rua normal. Essa sensação de insegurança, eu não tinha aqui”, diz a empresária Lucivan Soares.
A presença de muros altos, câmeras, porteiro e interfones pode até dar uma sensação de segurança, ou, pelo menos, servir de uma paliativo, mas não blinda a comunidade. Ao lado dessa rua condomínio, um dono de uma mercearia, que não quis se identificar, admite trabalhar com medo no local. “Já fui assaltado algumas vezes. Aqui, depois das 19h, só vendo através das grades”, admite. Para ele, a ilha da fantasia não existe!