Ler, Ver e Comer | 14 de Dez de 2017 - 10h12

Fernanda Rodrigueana

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O dramaturgo e escritor Nelson Rodrigues, o maior cronista da vida urbana que o Brasil já teve, costumava dizer que “o que dá ao homem um mínimo de unidade interior é a soma de suas obsessões”. Essa citação bem que pode servir de resumo do enredo de “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”, novo romance da atriz Fernanda Torres.
 
A trama acompanha a ascensão e queda do ator Mario Cardoso, desde sua estréia no teatro com “Hair”, na alucinada Copacabana da década de 1960, passando por seu estrelato como ator da novela das oito até chegar a ser garoto propaganda de papel higiênico. O livro mostra muitas conquistas, mas é nos fracassos que está toda a atração, e são neles que se revelam as obsessões do personagem. 
 
Fernanda consegue narrar a evolução cultural do Brasil na medida que acompanha a história de vida de Mario. Seu humor fino despeja dardos que atingem em cheio a atual onda do politicamente correto, da pasteurização do que pode ser considerado culturalmente relevante, da patrulha utópica da esquerda versus direita e vice versa. A escritora/atriz não poupa nem as novelas bíblicas da emissora mantida com dízimo!
 
Mario começa a olhar para si, para sua vida de ilusão, após fracassar numa montagem de Rei Lear de Shakespeare. De repente, o teatro experimental de esquerda, as novelas, as pornochanchadas, o sucesso, tudo que ele viveu não tem mais sentido. Ele percebe tarde demais que ser ator exige bem mais que fantasia. A realidade é instransponível. A vida é trágica, e não há personagem que possa ocupar a sua própria alma e identidade.
 
Fernanda Torres se vale de uma narrativa curta e precisa e de um humor de comédia de horrores que só encontra paralelo no próprio Nelson, o que resulta em uma obra vibrante, atual, hilária e impossível de não ser lida de uma sentada só. Por também ser atriz, ela sabe dosar as críticas, ora veladas, ora escancaradas, do seu texto com maestria.
 
O ritmo da escrita da autora dá a impressão ao leitor que é uma atuação. Cada frase inspira uma inflexão, como se Fernanda ajustasse com palavras o tempo de comédia e a hora de despejar drama. Uma dosagem perfeita de realidade, fantasia e crítica da atualidade. A verdadeira glória do livro é perceber que atores são humanos, como tais, falíveis, e, no caso do protagonista Mario, essas falhas podem ser hilárias!